byGicel

sábado, 10 de dezembro de 2011

Narciso, vestido de branco

Essa história se passa na cidade de Araras, no interior de São Paulo, sendo conhecida pela grande maioria dos moradores locais.  Ela foi escrita pelo jornalista, locutor e radialista Cardoso Silva e publicada originalmente no Jornal de Araras, em 25  de junho de 1953.
Segue o texto:
"Narciso, vestido de Branco
Terça feira chuvosa. Ruas velhas borradas de lama. E uma espécie de fúnebre pregão reboando em todos, os cantos da velha Araras
– Doutor Narciso morreu!...
Há embaixo, na rua Tiradentes, na casa que ficava quase à esquina, junto da desaparecida Farmácia Auro­ra (onde hoje é loja de caados) foram chegando as pessoas amigas, os políticos, o povo, enfim, que levava uma lágrima sentida ao cadáver do pai dos pobres na e mais tocante das homenagens silenciosas!...
A cidade ficou soturna. Um movimento lento levava as criaturas para o esquife de Narciso Gomes. Feriado local. Luto nas almas companheiras do homem de grande caráter. Do médico de confirmada sabedoria. E a noticia se espalhando, cada vez mais:
– Doutor Narciso morreu!...
Naquela tarde o chouto surdo dos pés acompanhantes levariam o cadáver do político honesto em caixão pranteado para a Necrópole Municipal. A chuva continuava. Dir-se-ia, que também, chorava a natureza sincera da Araras que já aconteceu!
Chuva cai. Lama vermelha nos caminhos molhados. Uma casa de caboclo. Uma enferma, esquálida, muito pálida, sobre cama humilde. Arqueja. Arfa. Pneumonia dupla. Uma cliente do dr. Narciso Gomes. O marido – um caboclo magro e forte – nervoso. Percebe a febre dominando a pobre esposa. E pensa:
– Chove muito. Ele não virá.
A doente geme. O marido sofre. Derrepente, panca­das secas na porta de velhas tábuas. O caboclo atende. Ë o médico que chega. O dr. Narciso, em pessoa. E co­mo sempre, todo vestido de branco. Terno de linho branco. Sapatos brancos, de praia. Meias brancas. Gravata branca numa camisa branca de duro colarinho branco. E – curioso! – cabelos brancos. Entra. Cumprimenta cordial, afável. Como sempre. E atira a clássica pergunta:
– Como vai a nossa doente ?
Vão ao quarto. A alegria do caboclo é tanta que nem repara que ainda está chovendo muito, lá fora, mas, que o querido médico não está molhado. Que seus pés não trouxeram barro do caminho. Que não havia, sequer, um cabriolé à porta. O caboclo nem se lembra de perguntar sobre a maneira pela qual dr. Narciso ali chega­ra. O médico examina sua paciente. Sorri e afirma:
– Você, compadre, ainda hoje mande aviar es­ta receita que vou dar. Não precisarei vir mais, entende? Sua mulher está salva. Basta que tome, direitinho, o re­médio que receito.
– Sim, senhor, doutor. Ainda hoje...
E, após ter feito a receita, assina e data. Depois, num sorriso paterno, carinhoso, despede-se da sua cliente. E o caboclo:
– Quando é que volta, doutor?
– Não sei – suspirou dr. Narciso.
E vendo que o médico se afastava do quarto, o caboclo:
– Já se vai? Não quer que lhe acompanhe?
– Não – foi a resposta. Para onde vou, preciso ir sozinho.
E a um gesto seu fez com que o marido ficasse junto da doente. E saiu. O caboclo escutou quando a porta se abriu e o ruído foi acompanhado pelo ribombo de um trovão mais forte. A chuva continuava cair...
A mesma tarde de chuva. O caboclo entra em Araras e percebe o ar de tristeza que envolvia a cidade to­da. Ruma, direitinho, para a Farmácia Aurora. Encontra-a fechada. O caboclo pensa que é feriado nacional. Bate ao portãozinho, de lado. A senhora do farmacêutico atende e o caboclo, molhado de chuva:
– Tarde! Vim mode aviar uma receita!
– Meu marido não está. Foi ao cemitério, no enterro... O senhor, se quiser, pode entrar e esperar na farmácia. Não há-de ficar sob a chuva!
– Brigado, eu espero!
E esperou. Sentado num banco característico da conhecida botica da cidade velha. Veio o farmacêutico. Saudou o freguês, num sorriso. Mas, o caboclo notou tristeza no rosto amigo do simpático farmacêutico. Explicou, ao que vinha, O espanto foi natural:
– Mas, o senhor está certo do que diz? Isso foi hoje?
– Sim, senhor. Hoje... ali pelas duas horas. De­pois que ele saiu tomei do cavalo e vim depressa por­que ainda hoje devo começar a dar o remédio p’ra mulher!
O farmacêutico não aguentou mais:
– Não posso crer! Nessa hora estávamos fazendo sentinela ao cadáver do dr. Narciso Gomes e ele, de fato, estava inteiramente vestido de branco.., até os sa­patos! Se estou chegando do cemitério agora mesmo! Se estou vindo do enterro dele...
É justo! O caboclo empalideceu. Começou a suar frio. Tomou novo alento e estendeu a receita. Ali estava a assinatura autêntica do dr. Narciso Gomes. Ali estava a data assinalada.
Mesmo depois de morto, dr. Narciso, vestido de branco, fora socorrer mais um dos seus pobres. O cabo­do estava lívido. E o farmacêutico desmaiou."




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